Novo sítio paleontológico em Fortaleza dos Nogueiras coloca o Brasil no mapa global das descobertas jurássicas

Um grande passo – literalmente – foi dado na paleontologia brasileira com a revelação de um dos mais significativos registros de pegadas de dinossauros do período Jurássico já descobertos na América do Sul. O achado ocorreu no município de Fortaleza dos Nogueiras, no sul do Maranhão, onde uma equipe multidisciplinar de cientistas identificou um novo sítio icnofossilífero , o Parque Ecológico Tangará, com pelo menos 78 pegadas fossilizadas atribuídas a dinossauros terópodes, datadas de aproximadamente 200 milhões de anos.
As pegadas, produzidas em camadas de arenitos da Formação Mosquito, oferecem pistas sobre o tipo de dinossauro que habitava a região durante o início do Jurássico, assim como revelam informações sobre o ambiente e as condições ecológicas da época. Publicado na edição especial do Italian Journal of Geosciences, o estudo liderado pelo geólogo Ismar de Souza Carvalho (UFRJ) em parceria com pesquisadores de diversas instituições brasileiras marca um novo capítulo na compreensão da biodiversidade mesozóica brasileira e de sua distribuição geográfica.
O sítio Tangará: vestígios de um mundo perdido
O sítio icnofossilífero Tangará, localizado às margens do rio Mosquito, apresenta uma sucessão sedimentar de aproximadamente 40 metros de espessura, composta principalmente por arenitos intercalados com laminações microbianas e níveis de silexito ferruginoso. Esses elementos indicam que a área, há milhões de anos, alternava entre dunas áridas, lagos temporários e zonas úmidas colonizadas por microrganismos, criando as condições ideais para a preservação de pegadas.
Segundo o estudo, as estruturas geológicas locais foram formadas em um contexto ambiental complexo, influenciado tanto por eventos vulcânicos quanto por oscilações climáticas que moldaram a paisagem. A presença de biofilmes e tapetes microbianos, conforme os autores, foi importante para a estabilização do substrato e a preservação das pegadas, funcionando como uma espécie de “selo natural” que protegeu os vestígios contra a erosão e o tempo.
Cinco tipos de pegadas, cinco possíveis grupos de dinossauros
As pegadas fossilizadas foram classificadas em cinco morfotipos distintos. Todas apresentam o padrão tridáctilo típico dos dinossauros terópodes – grupo que inclui predadores bípedes como o famoso Tyrannosaurus rex, embora os exemplares de Fortaleza dos Nogueiras sejam muito mais antigos.
O maior dos morfotipos, identificado como FNTA 35, tem 39 centímetros de comprimento e pertence a um animal de grande porte, possivelmente um grande terópode. Já o menor, FNTA 76, mede apenas 16,6 centímetros, sugerindo a presença de dinossauros mais esguios e ágeis. As variações morfológicas entre os tipos indicam que diferentes espécies de dinossauros habitaram a região ou, alternativamente, que indivíduos de idades e tamanhos distintos compartilhavam o mesmo território.
Comparações feitas com pegadas similares em outras partes do mundo, como França, China e Estados Unidos, sugerem parentescos distantes ou paralelos evolutivos entre os animais que deixaram suas marcas no Maranhão e aqueles de outras regiões de Gondwana e Laurásia – os dois supercontinentes que formavam a Terra no início do Mesozóico.
Um ambiente desafiador para grandes répteis
A região onde hoje está o Maranhão era, há 200 milhões de anos, um cenário inóspito, mas fértil em biodiversidade. Dominada por campos de dunas, planícies alagadas e lagos efêmeros, essa paisagem árida era esculpida por ventos intensos e marcada por fases de umidade passageira, o que favorecia a proliferação de vida microbiana.
Essas condições, aparentemente hostis, abrigaram uma diversidade significativa de dinossauros, como indicam os vestígios encontrados. “Os dinossauros não apenas atravessavam esses desertos úmidos, mas os habitavam”, afirma Ismar Carvalho. “O que antes parecia um território inóspito para grandes vertebrados se mostra, com essas descobertas, um ambiente dinâmico, com zonas de umidade suficientes para sustentar uma fauna terrestre expressiva.”

As pegadas como documentos
As pegadas fossilizadas funcionam como documentos da atividade comportamental e locomotiva dos dinossauros. Por meio delas, é possível inferir o tamanho, o ritmo de deslocamento e até a anatomia dos pés dos animais, além de sua interação com o substrato.
O estudo identificou, por exemplo, que muitas das pegadas estão preservadas em superfícies com laminados microbianos e rachaduras de dessecação, o que indica que os dinossauros caminharam sobre solos úmidos, estabilizados por colônias de microrganismos. Essa interação entre fauna e microbiota é importante para a preservação dos fósseis e representa um novo campo de investigação na paleontologia sedimentar.
Um registro raro no contexto brasileiro
Pegadas de dinossauros do período Jurássico são raras no Brasil. Até então, os principais registros do Mesozóico vinham de formações geológicas do Paraná e do Araripe, com predominância de fósseis do Cretáceo. A nova descoberta amplia o alcance geográfico e cronológico da paleontologia nacional, inserindo o Maranhão – e a Bacia do Parnaíba – no mapa global das ocorrências jurássicas. O registro do Tangará Ecopark é particularmente importante porque antecede em milhões de anos os vestígios mais conhecidos do Cretáceo. Além disso, seu contexto sedimentar específico, com camadas intercaladas de basalto e arenito, oferece uma oportunidade para estudar a transição ambiental entre o final do Triássico e o início do Jurássico.
Pistas sobre quem foram os autores das pegadas
Embora seja arriscado atribuir espécies específicas a pegadas fossilizadas, os pesquisadores identificam possíveis “autores” dos rastros com base em comparações morfológicas. Grupos como os neoterópodes basais, que incluem o famoso Dilophosaurus, além de possíveis representantes dos abelissaurídeos e coelofisoides, são candidatos prováveis. Os autores do estudo ponderam, contudo, que a grande variedade morfológica observada nas pegadas é resultado da diversidade de dinossauros, mas também das características do solo e da forma como os animais se movimentavam sobre ele. Essa variabilidade torna a classificação precisa um desafio técnico e conceitual.
Tecnologia de ponta no trabalho de campo
A pesquisa utilizou metodologias modernas de documentação, como fotogrametria e imagens aéreas com drones, além de mapeamentos sistemáticos com uso de quadrantes métricos. As pegadas foram codificadas segundo o sistema de Leonardi (1987), usando a sigla FNTA para identificar os vestígios do município de Fortaleza dos Nogueiras (FN) e do sítio Tangará (TA). Essas técnicas permitiram o registro das formas, dimensões e orientações das pegadas, possibilitando uma análise comparativa com outros sítios icnofossilíferos ao redor do mundo.
Relevância científica e patrimonial
Além do avanço científico, a descoberta tem implicações diretas para a valorização do patrimônio natural e cultural do Maranhão. A existência de um sítio icnofossilífero deste porte abre caminhos para iniciativas de geoturismo, educação ambiental e conservação, além de fortalecer o vínculo entre as comunidades locais e seu território. O Tangará Ecopark, onde os fósseis foram encontrados, surge como um potencial pólo de visitação científica e ecopedagógica, reunindo esforços de pesquisadores, gestores públicos e moradores em torno da preservação do sítio.
Os autores
Ismar de Souza Carvalho, Manuel Alfredo Medeiros, Roseane Ribeiro Sarges, Denise Carla da Silva Mendes, Rossano D. L. Michel, Claiton M. S. Scherer, Bernardo de C. P. e M. Peixoto, Heitor R. D. Francischini, Renato P. Ghilardi, Roberto Vasconcelos Marques, José Maria dos Reis Maia Filho e Hannah Souza Levy.
Glossário
Confira a explicação de termos presentes neste texto
Sítio Icnofossilífero– Local onde se encontram vestígios fossilizados de atividade de seres vivos, como pegadas, trilhas ou marcas.
Tridáctilo – Que possui três dedos. No contexto, refere-se à forma das pegadas deixadas por dinossauros terópodes.
Terópodes – Grupo de dinossauros carnívoros, geralmente bípedes, que inclui espécies como o T. rex e o Velociraptor, além das aves.
Arenito – Tipo de rocha sedimentar formada por grãos de areia compactados.
Laminações microbianas – Estruturas em camadas formadas por colônias de microrganismos que atuam na sedimentação.
Biofilme – Camada fina de microrganismos que cresce sobre superfícies, podendo auxiliar na fossilização.
Morfotipo – Forma característica de uma pegada ou estrutura fossilizada, usada para classificar vestígios diferentes.
Basalto – Rocha de origem vulcânica que aparece como camadas na Formação Mosquito.
Silexito – Rocha sedimentar rica em sílica, dura e resistente, que pode preservar fósseis.
Eolianas – Relativas ao vento. Refere-se a formações geológicas criadas pela ação eólica, como dunas.
Interdunas – Áreas mais baixas entre dunas, que podem acumular água e sedimentos finos.
Playa lake – Lago temporário formado em áreas desérticas durante períodos de chuva.
MISS (Microbially Induced Sedimentary Structures) – Estruturas sedimentares geradas por atividade de microrganismos.
Neoterópodes – Subgrupo de dinossauros terópodes, mais primitivos, comuns no início do Jurássico.
Abelissaurídeos – Grupo de dinossauros carnívoros, como o Carnotaurus ou o Pycnonemosaurus, comuns na América do Sul durante o Cretáceo.
