O Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) surgiu com a finalidade de, entre outras coisas, controlar e fiscalizar a circulação de armas, munições e respectivos acessórios em todo o território nacional. Sob tais premissas, foi criado o Sistema Nacional de Armas (SINARM), instituído no Ministério da Justiça, no âmbito da Polícia Federal e com circunscrição no país inteiro.
Entre as inúmeras atribuições no SINARM, no termos do artigo 2º, do Estatuto, podemos destacar as seguintes: a) identificar as características e propriedade de armas de fogo, mediante cadastro; b) cadastrar armas de fogo produzidas, importadas e vendidas no Brasil; c) cadastrar as autorizações de porte de arma de fogo e as renovações expedidas pela Polícia Federal; d) cadastrar a transferência de propriedade, extravio, furto, roubo e outras ocorrências; e) cadastrar mediante registro os produtores, atacadistas, varejistas, exportadores e importadores autorizados de armas de fogo, acessórios e munições.
O porte de arma de fogo, como regra, é proibido em todo território nacional, salvo nos casos previstos em lei. Nota-se, portanto, que essas exceções não estão previstas apenas no Estatuto do Desarmamento, podendo constar em outros diplomas normativos, como ocorre com membros do Ministério Público e da Magistratura, por exemplo.
Assim como se dá na posse, cabe à Polícia Federal, após autorização do SINARM, expedir o porte de arma de fogo de uso permitido. Se a posse autoriza que o sujeito apenas mantenha arma de fogo em sua residência ou em local de trabalho (desde que seja o proprietário ou o responsável legal pelo estabelecimento), o porte o habilita para trazê-la consigo, em condições de uso imediato.
O porte é válido apenas com a apresentação do documento de identidade do portador, sendo indispensável o prévio registro da arma de fogo (arts. 23 e 24, do Decreto nº 5.123/04). No artigo 6º, do Estatuto, encontramos as autoridades e agentes que possuem a prerrogativa do porte, sendo que entre eles, como não poderia deixar de ser, estão os integrantes das instituições policiais (Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Militar, Polícia Rodoviária Federal etc.)
O objetivo desse trabalho é analisar a questão do porte de arma por policial aposentado. Em consonância com o referido artigo 6º, do Estatuto do Desarmamento, algumas autoridades ou agentes estatais possuem o porte em razão da atividade que exercem. Com base nessa premissa, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o policial aposentado não tem direito ao porte, uma vez que não mais se encontra no exercício da função (STJ, HC 267.058/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, Dje. 04.12.2014).
Com o devido respeito, entendemos que a referida decisão foi absolutamente infeliz, desrespeitando não apenas o policial – que serviu à sociedade durante muitos anos, colocando sua vida em risco e até a de sua família – mas, sobretudo, às lições mais comezinhas da lógica.
É cediço que os policiais, de um modo geral, estão na linha de frente do combate ao crime, exercendo uma função de risco reiteradamente reconhecida pelos nossos tribunais e pelos legisladores. Em razão disso, o ordenamento jurídico conferiu aos policiais a prerrogativa do porte de arma de fogo, não apenas no exercício das funções, mas também fora do horário de serviço. Isto, pois, são inúmeros os casos de policiais vítimas de homicídio, na maioria das vezes relacionado com a sua atividade ou até pelo simples fato de integrar uma determinada instituição.
Aliás, atento a esta triste realidade o legislador alterou recentemente o nosso Código Penal através da Lei nº 13.142/15, que inseriu no artigo 121, § 2º, uma nova qualificadora para os casos de homicídio praticado contra policiais e outros agentes ligados à segurança, sempre que a conduta estiver relacionada ao exercício de suas funções.
Parece-nos que a decisão ora combatida está em completa dissonância com a vontade legislativa, que visa à proteção do policial. E nem se argumente que policiais aposentados não podem ser sujeitos passivos nessa qualificadora, pois a interpretação, nesse caso, está vinculada à seara penal, devendo-se observar a legalidade e a proibição de analogia em prejuízo do acusado. É preciso ressaltar o espírito da lei, sensível à realidade policial em nosso país.
Não podemos olvidar que um policial comprometido acaba angariando inúmeros inimigos ao longo de sua carreira, razão pela qual não pode ter o seu direito de defesa tolhido pelo Estado. Frise-se que efetivamente o Estado não concede a esses policiais garantia alguma de segurança após sua aposentadoria e muito menos durante a carreira. Agora pretender também desarmá-los e destituí-los até mesmo da autoproteção é o cúmulo do absurdo.
Ao criminalizar o porte de arma por policial aposentado o STJ acaba virando as costas para agentes estatais que protegeram a sociedade por diversos anos, passando a mensagem de que eles são descartáveis. Como podemos conceber tamanho disparate?! Enquanto em outros países os policiais são tratados como heróis, nos Brasil o nosso Poder Judiciário simplesmente desconsidera os serviços prestados por eles e os riscos tantas vezes assumidos em nome da segurança pública.
Se não bastasse, lembramos que ao longo da carreira o policial é constantemente submetido a cursos de aperfeiçoamento, sendo que a experiência angariada nesse período, por si só, já serve para demonstrar sua capacidade no manejo de uma arma de fogo. O fato de o policial encontrar-se aposentado não significa que ele tenha perdido sua habilidade ou responsabilidade no porte de arma de fogo. Assim, entendemos que nesse caso não há tipicidade material, pois o bem jurídico tutelado pelo Estatuto do Desarmamento não é lesionado pela conduta em questão. Afinal, como poderia um policial ser considerado apto para portar uma arma de fogo no seu último dia de serviço e, por outro lado, inapto no primeiro dia da sua aposentadoria?! Não há lógica alguma nessa decisão!
Destaque-se, ademais, que o porte de arma por policial aposentado também não inviabilizaria o controle sobre as armas de fogo pelo Estado, haja vista que o interessado precisaria adquirir uma arma de propriedade particular, devidamente registrada no SINARM. Em conclusão, destacamos que o policial aposentado não perde a essência de sua profissão, podendo servir à sociedade até o dia que tiver forças, representando mais uma arma contra a criminalidade que não para de crescer em nosso país.
Afora os argumentos supra expostos há que considerar que a infeliz decisão do STJ peca por inconstitucionalidade na interpretação e aplicação da legislação penal. Isso porque constitui uma clara situação de insuficiência protetiva a macular o “decisum” que se apega a um formalismo e literalismo exagerado, restringindo o alcance de uma norma permissiva indevidamente.
*Eduardo Luiz Santos Cabette, delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na Pós-graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.